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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

CABEÇA DE VACA - por Henrique Mércio

Portago, Edmund G. Nelson e a Ferrari 335-S. # 351 referia-se a hora de partida das Mille Miglia.

Fangio, Collins, De Portago e Luigi Musso, GP da Alemanha 1956.


Muito antes de Fernando Alonso tornar-se um ídolo do automobilismo, os espanhóis torciam por Alfonso de Portago nas pistas. Um piloto diferente, “Fon” era um nobre, autêntico marquês que não se importava de disputar freadas com os “plebeus”. De curta carreira (1953-1957), ele poderia ter entrado para a história da categoria como o piloto de nome mais exótico a passar por ela: chamava-se Alfonso Antonio Vicente Eduardo Angel Blas Francisco de Borja Cabeza de Vaca y Leighton Carvajal y Are. Para evitar as piadas, incorporou o seu título nobliárquico (Marquês de Portago) ao seu primeiro nome. Como dinheiro não era problema, nunca teve dificuldades para comprar o carro que quisesse, até mesmo uma Ferrari. Audacioso, uma de suas primeiras façanhas foi na aviação. Apostou com um amigo que seria capaz de passar com um pequeno aparelho por baixo dos arcos de uma ponte. De Portago ganhou a aposta, mas nunca pode tirar o brevê, ele que era recém saído da adolescência. Gostava de correr com cavalos também e foi integrante do primeiro time espanhol de bobsleigh (uma espécie de trenó), competindo nas Olimpiadas de Inverno/56. Porém, como o próprio Fon disse certa vez numa entrevista, sua paixão era o automobilismo. Casado, tinha dois filhos, mas nunca deixou de agir como um latim lover, tendo muitas namoradas. Estava quase sempre vestido de preto e com um cigarro na boca. Vestia-se de maneira frugal, mas denunciava sua origem nobre ao falar. Na equipe a qual esteve por mais tempo ligado, tinha uma relação difícil. Enzo Ferrari gostava de Portago como cliente, não como piloto. Mas o convidou para substituir Luigi Musso quando o italiano não pode continuar competindo em 1956. Das seis corridas em que participou, a melhor foi em Silverstone, onde estava em terceiro, atrás de Fangio e Moss, até ser chamado ao box, para ceder seu carro ao companheiro de equipe, Peter Collins. Nesses casos, os pilotos dividiam os pontos da colocação obtida. Fon de Portago entretanto, quis deixar bem claro sua insatisfação e pegou na Ferrari de outro companheiro, Eugenio Castelotti, que havia batido. Ele deu-se ao luxo de empurrar o carro abandonado e parou próximo à linha de chegada. Então acendeu um cigarro, pulou para dentro do cockpit e esperou. Quando o líder Juan Manuel Fangio recebeu a bandeirada e a corrida terminou, o espanhol desceu e empurrou os metros que faltavam, recebendo a bandeirada em 10º lugar. Já sua parceria com Collins rendeu a 2ª posição, a melhor em sua passagem pela F1. Em 57 ele continuou sua convivência instável com a casa de Maranello. Escrevia à Scuderia, pedindo uma vaga na equipe de fábrica e como resposta recebia uma foto sua, dando uma estampada em algum lugar. Em maio, depois de nova desistência de Luigi Musso (virose), é escalado num dos carros oficiais que participarão da Mille Miglia, uma singular competição de estrada na Itália. A Ferrari tinha o modelo 335-S e contava com Piero Taruffi, Wolfgang Von Trips, Peter Collins e Olivier Gendebien, além de Portago. A Mille Miglia era disputada em estradas nem sempre fechadas ao público. Os carros tinham numeração de três dígitos, de acordo com o horário de saída.


Enzo Ferrari e De Portago.

De Portago prepara-se para largada das MM.

 

Partia da cidade de Brescia e seguia para Roma. Na capital dava meia-volta e retornava para o norte, para Brescia. Dias antes, reunido com seus pilotos, o Comendador provocou: “Não ficarei surpreso se Olivier (Gendebien) terminar na tua frente”, disse ele para de Portago, que não respondeu. Na verdade era mais que uma provocação, pois Gendebien iria correr com uma Ferrari GT, portanto menos potente que as 335-S da categoria principal. 

O espanhol resolveu que daria a resposta na pista e aquela madrugada, largou às 5:31, na companhia do co-piloto Edmund G. Nelson, um velho amigo jornalista. Até Roma tudo foi bem. Chegaram à capital na 5ª posição e encontraram a atriz Linda Christian (apesar do nome anglicizado, era mexicana de nascimento), a grande paixão de Portago. Ele freou perto dela, que foi até o carro e conversaram. O casamento nunca foi motivo para que o marquês e Christian escondessem o namoro. Depois, trocaram um beijo e ele prosseguiu até Bolonha, onde faria os reparos. Lá, uma surpresa desagradável: seus mecânicos descobrem que a suspensão dianteira esquerda está avariada e que seria melhor desistir, porque o carro não agüentaria até Brescia. Fon toma a decisão condizente com o homem sem medo que era: ele ignora e segue em frente. No retorno, não economiza o carro. Ultrapassa Manfredi em Parma e depois Gendebien em Cremona.

Estava na terceira posição, com Taruffi em primeiro e Von Trips em segundo. Collins um dos ingleses queridinhos de Enzo desistira. A ordem final era clara: nada de disputas domésticas. Taruffi deveria vencer, Von Trips seria o segundo e Fon, o terceiro. A idéia de afrontar o velho arrogante desobedecendo-lhe os mandos, devia estar germinando na cabeça de Portago desde aquela reunião de pilotos. Faltando 30 km para a bandeirada, a Ferrari nº 531 aproxima-se da cidadezinha de Guidizzolo e está num trecho de reta, a 220 km/h. Na entrada da cidade, a quebra da suspensão comprometida (ou um pneu estourado) a faz guinar à esquerda, bater num marco de sinalização de quilômetros e levantar vôo. Acerta e derruba um poste telegráfico, que muda sua trajetória e a faz ir parar em cima do público que está assistindo à beira da estrada.

Totalmente destruída, a 335-S vai finalmente parar numa vala à direita da estrada. Muitos feridos, dez mortos, dos quais cinco crianças. Fon de Portago (28) e Eddy Nelson(40) foram jogados fora do carro, depois da batida no poste. Nelson faleceu horas mais tarde e o marquês morreu no ato. No blusão que vestia, havia além de seu passaporte, uma pequena nota, dizendo que era católico e que se algo lhe ocorresse, deveria ser chamado um padre.

Consideradas perigosas tanto para pilotos quanto para o público, as Mille Miglia não foram mais disputadas.

O acidente também custou ao Commendattore um processo de quatro anos, que esvaiu os recursos do time, forçando o início das malogradas negociações de sua venda para a Ford. Enzo Ferrari terminou inocentado.

 

Henrique Mércio  - Caranguejo 


Post original de 16 de agosto de 2010