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quinta-feira, 11 de março de 2010

O HOMEM DE KERPEN - por Henrique Mércio.

 
A temporada de 1961 é considerada a mais sangrenta da Fórmula 1, muitas vezes comparada em vulto à tragédia de Le Mans, seis anos antes. Tudo provocado pela magnitude de um acidente envolvendo um dos postulantes ao título de campeão e que de certo modo interferiu na disputa, dando a um dos pilotos a sua coroa e retirando o outro, de forma brutal, da competição. Contudo, não havia nada que antecipasse esses acontecimentos. A Ferrari mais uma vez manipulara a FIA para que o regulamento fosse mexido e a beneficiasse. Parecia uma receita pronta: quando a italianada levava um “chocolate” de alguma equipe, pressionava para diminuir o tamanho dos motores e então homologava alguns de seus propulsores de F2, nos quais coincidentemente ela já vinha trabalhando há algum tempo. Foi assim em 1952 quando depois de derrotada nos mundiais de 50-51 pela Alfa-Romeo, a Ferrari usou de sua força política para mudar as regras. Começava aí o domínio de Alberto Ascari com a Ferrari 500 (na verdade, um carro de Fórmula 2) em 52-53. Agora, a tradicional Scuderia fora “surrada” nos dois últimos anos pelo Cooper de Jack Brabham e se fazia necessário tomar uma providência. O resultado fora a limitação dos motores em 1.5 litros e o surgimento da bela 156 “Shark Nose” (Nariz de Tubarão), o primeiro carro da Ferrari com motor traseiro.
Von Tripps e a Ferrari 156 "shark nose".

 Aquele atraso era fruto da teimosia de Enzo Ferrari, que dizia que em seu entendimento era o burro que puxava a carroça e não ao contrário; uma analogia esquisita, principalmente em se tratando de um carro de corridas. A carroça, ou melhor, a Ferrari 156 começou a rodar ainda em 60, com o alemão Wolfgang von Trips, único remanescente da Squadra Primavera. Dos outros cinco pilotos, três não haviam sobrevivido a categoria, um morrera num acidente de trânsito e o quinto desistira, pressupondo que von Trips fora o eleito. Mas o homem de Kerpen-Horrem (mesma terra onde anos mais tarde, nasceria um certo Michael Schumacher), era um piloto errático e passava longe de ser uma unanimidade. Von Trips era um conde de verdade, que tivera seu interesse despertado para o esporte a motor, pelas vitórias de Bernd Rosemeyer. Problemas de saúde tiraram-no das listas de recrutamento da II Guerra Mundial. Wolfgang Alexander Albert Eduard Maximilian Reichsgraf Berghe von Trips sofria de problemas com a súbita diminuição da taxa de açúcar no sangue (isso o fazia levar comida no carro, para alimentar-se durante a prova) Concluiu seu curso de Agronomia e para passar o tempo, ensinava noções de direção a um outro jovem bem-nascido, de quem era amigo: o jovem príncipe Juan Carlos de Bourbon (futuro Rei Juan Carlos da Espanha). O curioso é que von Trips também não tinha carteira, pois nunca se preocupou em obter uma. Para poder correr, inscrevia-se nas provas com o nome falso de “Alex Linter”. Sua tradicional família, moradora a mais de 700 anos no Castelo Hemmersbach, não aprovava esse estilo de vida, mas von Trips acabou chamando a atenção de Alfred Neubauer, chefe da equipe Mercedes-Benz. A parceria só durou pela temporada de 1955, pois logo a Mercedes encerraria suas atividades. Já havia contudo outro poderoso dirigente de equipe de olho no alemão: Enzo Ferrari. Na equipe italiana, von Trips procurou contornar a briguinha territorial entre Musso/Castellotti e Collins/Hawthorn, até porque ele também tinha seus próprios problemas. Don Enzo passava chamando sua atenção e pedindo mais cuidado e menos batidas. Tanto foi até que o Comendador deu-lhe um gancho e o suspendeu por um ano, em 1959. Enquanto esperava a braveza do velho passar, von Trips fez algumas provas pela Porsche, mas logo foi chamado de volta, pois a nova Ferrari precisava de um bom acertador.
Von Trips, Jo Bonnier e Jean Behra em Avus no dia em que Behra perdeu a vida. A vitória esse dia foi de von Trips.

Em seu retorno em julho de 1960, venceu o GP de Solitude, uma prova de Fórmula 2, demonstrando o potencial do novo carro. No final do ano, foi o 4° colocado no GP de Portugal. A Ferrari, seguindo a tendência da época, montou uma equipe com três pilotos (von Trips, Phil Hill e Ritchie Ginther ) e mais alguns “semi-privados” (Olivier Gendebien, Giancarlo Baghetti e Ricardo Rodriguez), que correriam esporadicamente. Mas esqueceram de avisar a Stirling Moss que a festa era só para carros italianos e o inglês calvo venceu em Monte Carlo, com um Lotus. Von Trips reagiu e ganhou em Zandvoort, mas na terceira etapa, aquele que seria seu maior adversário venceu em Spa Francorchamps: Phil Hill. O piloto americano era tão antigo em Maranello quanto o alemão. Fora também contemporâneo de Mike Hawthorn, a quem prestara inestimável ajuda em 1958, deixando-se ultrapassar quando ocupava a segunda posição no GP de Casablanca. Com essa colocação, Hawthorn vencera o Campeonato Mundial, mesmo com a vitória de Stirling Moss na corrida. Na equipe não havia uma definição de papéis e todos tinham as mesmas oportunidades. Na corrida seguinte, GP da França em Reims, um lance curioso na guerra psicológica entre von Trips e Hill. A pole ficara com Hill, um segundo e meio mais rápido que o alemão, que reclamou ser seu carro menos veloz que o de Hill. Este pediu para dar uma volta na Ferrari do companheiro de equipe. Ao experimentar o outro carro, o americano melhorou a marca de von Trips em um segundo e ainda tripudiou dizendo que perdera tempo por causa de uma mancha de óleo...Mas durante a prova, a soberba o trai e Hill roda sozinho, quando ocupava a liderança. É colhido por Stirling Moss e atrasa-se. Von Trips abandona ao ter seu radiador furado por uma pedra. A terceira Ferrari, de Ritchie Ginther enfrenta problemas com a pressão do óleo mas a equipe insiste em mantê-lo na corrida, até que o motor quebra de uma vez. Sobra o quarto carro, nas mãos do estreante Giancarlo Baghetti. Este pilotava uma Ferrari “privada”, que pertencia a Federazione Italiana Scuderie Automobilistiche, que achara por bem dar uma chance a Baghetti depois dele ter vencido os dois primeiros GPs extra-oficiais de F1 em que tomara parte, em Siracusa e Napoli. Teria que derrotar o norte-americano Dan Gurney e o sueco Jo Bonnier com seus Porsches, líderes quando faltavam doze voltas para terminar. Baghetti pressiona Gurney e Bonnier recolhe aos boxes. Trocam de posições algumas vezes. Na última volta, Giancarlo arrisca tudo e vence “The Great Daniel” por um décimo de segundo (Gurney não é tão bom assim e Baghetti já o derrotara antes, na prova de Siracusa) tornando-se o primeiro estreante a vencer em sua primeira corrida. Festa para os tifosi da Ferrari, mas o que importava era a disputa pelo campeonato, restrita a Hill e von Trips.

 Na etapa seguinte, em Aintree, Inglaterra, muita chuva e vitória de von Trips, que não consegue evitar o revide de Moss, ganhador da prova seguinte, em Nurburgring. A esta altura, o alemão conseguira livrar uma pequena vantagem (33 x 29 pts) e pode ser campeão em Monza, com um terceiro lugar. Porém, parece que a Wolfgang von Trips só interessa vencer e ele faz a pole position, a primeira de sua carreira. Nesse ano a pista de Monza apresenta um desafio maior: o Grande Prêmio será disputado pelo traçado normal e mais o anel de velocidade, o chamado “banking”, passando duas vezes na reta dos boxes. A Ferrari volta a surpreender com mais um jovem estreante: Ricardo Rodriguez (19), que marca o segundo melhor tempo. Na largada, talvez desacostumado a sair na frente, von Trips hesita e é ultrapassado por Rodriguez, Ginther e Hill. Um novato escocês chamado Jim Clark também larga bem. A Ferrari usava uma relação de marchas mais longa, o que a fazia ser rápida nas retas e lenta nas curvas. Clark e seu Lotus se aproveitam disso e von Trips perde outra posição. Preocupado, pois Hill está na liderança, o alemão tem pressa e ultrapassa Clark na Curva Di Lesmo na segunda volta, mas Jimmy pega o vácuo da Ferrari na curva Viallone e antes da Parabólica esboça uma ultrapassagem, por fora. Von Trips leva o carro para o mesmo lado, toca no Lotus e então o horror. A Ferrari sai para a esquerda e sobe no alambrado atingindo as pessoas. Na época os carros de corrida não tinham cinto de segurança. O piloto é cuspido fora. O carro acerta o Lotus, machucando Clark. Doze pessoas morrem no ato e duas mais tarde.
O acidente em Monza.

O GP prossegue e a equipe sequer cogita retirar seus outros quatro carros. Hill e Ginther disputam a liderança enquanto as Ferraris vão desistindo: Baghetti, Rodriguez e até Ginther, finalmente sobrando Phil Hill com a única das “rossas” a concluir a corrida da tragédia. Estranhamente, Clark deixou a Itália sem prestar depoimento, o que repercutiu mal. Esse será apenas o primeiro dos problemas da equipe Lotus com a justiça italiana, posteriormente agravados pelos acidentes fatais de Jochen Rindt (1970) e Ronnie Peterson (1978), pilotos da equipe que morreram em Monza. O que provocara a batida? Para Phil Hill, von Trips distraira-se e não consultou os espelhos para ver onde Clark estava, pois achou que o carro do escocês não tinha motor para acompanhá-lo. Imaginou que o havia deixado para trás e pensava em juntar-se às três Ferraris que iam a sua frente. Esqueceu-se que corrida naquela pista de Monza, sem as chicanes, era um jogo de vácuo. Com a vitória e os descartes, Hil somou 34 pontos e bateu von Trips por um ponto. Só então a Ferrari assumiu o seu luto e decidiu não participar da última etapa daquele ano, em Watkins Glen/EUA, privando Phil Hill de apresentar-se ante seus torcedores como o novo Campeão Mundial. Baghetti não voltou a ganhar corridas. Ele recebeu uma nova chance como piloto “oficial” da Ferrari mas acabou perdendo espaço para Lorenzo Bandini. No começo dos anos 70 encerrou sua carreira. Ginther continuou nas pistas e quatro anos mais tarde tornou-se o primeiro piloto a vencer uma corrida com um carro fabricado pela Honda e equipado com pneus Goodyear (México/65). Quanto a Hill, no ano seguinte abandonou a Ferrari para abraçar o projeto da A.T.S.( Automobili Turismo e Sport) juntamente com Carlo Chiti, Romolo Tavoni e Giancarlo Baghetti. A nova equipe não vingou e a maior parte dos dissidentes voltou a Maranello. Phil Hill envolveu-se com as filmagens do filme “Grand Prix” (1966) e realizou todas as cenas “on board” da película, além de ganhar um papel com fala. Curiosamente, até o final de vida evitou falar dessa sua investida na carreira artística, parecendo ter restado algum tipo de mágoa. Quanto a Wolfgang von Trips, ele recebeu de seus familiares, amigos e admiradores uma estátua na cidade de Kerpen. Um dos empreendimentos que explorava, uma pista de karts, foi vendida e acabou sendo administrada por um senhor chamado Rolf Schumacher. Rolf costumava levar seu pequeno filho Michael para treinar lá e o resto é história.


CURIOSIDADES:


No GP da Bélgica/61, a Ferrari conseguiu uma inédita “quadrifeta”, com seus carros nas quatro primeiras posições: 1°)Hill, 2°)Von Trips, 3°)Ginther e 4°)Olivier Gendebien, este com uma singular Ferrari amarela, cor oficial da Bélgica nas competições;

Na história da F1 há dois vice-campeões “post mortem”, ou seja, conquistaram esse laurel depois de suas mortes. Wolfgang von Trips e Ronnie Peterson: ambos sofreram acidentes num dia 10 de setembro; no começo da corrida e o campeão acabou sendo seu companheiro de equipe, com quem estavam se digladiando. Tudo na pista de Monza;

Ritchie Ginther e Phil Hill eram amigos de infância. Hill conhecia um dos irmãos mais velhos de Ginther e lembrou-se de Ritchie quando precisou de um mecânico. Grande incentivador da carreira do amigo, Hill tornou-se seu parceiro de equipe na Ferrari e juntos envolveram-se também na produção do melhor filme já feito sobre corridas de carros: Grand Prix;

Wolfgang von Trips era conhecido por Taffy nas pistas, apelido conferido por Mike Hawthorn, com quem correu na Ferrari;


Ricardo Rodriguez, irmão menor de Pedro Rodriguez teve uma carreira curta. Um ano depois de Monza, ele sofreu um acidente fatal treinando para uma corrida extra-oficial, o GP do México. A Ferrari não quis confiar-lhe um carro e Ricardo estava com um Lotus 24, da Equipe de Rob Walker. Bateu na curva Peraltada. Hoje a pista mexicana leva seu nome e o de Pedro: Hermanos Rodriguez;


O anel de velocidade de Monza, conhecido como Banking, só foi utilizado quatro vezes nos GPs de F1.